Solidão da mulher negra: por que as mulheres negras sofrem no amor?
- 28 de novembro de 2022
- 15:30
- Talitha Benjamin
Quando o assunto é relações interraciais, é comum ouvirmos a expressão “o amor não tem cor”. Essa frase poderia ser um ótimo reflexo sobre as inexistentes barreiras do sentimento afetivo, mas, na prática, a desigualdade racial tem efeitos reais, diretos e bastante dramáticos na vida da mulher negra no Brasil. Para explicar esse fenômeno, muito se discute sobre a “solidão da mulher negra”, principalmente de uns anos para cá.
Não se trata de um exagero, e muito menos de “mimimi”: as mulheres negras, principalmente as de pele retinta, somam o maior número de união não-estável no Brasil, de acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, culturalmente, a mulher negra é a mais propensa ao “celibato definitivo”, ou seja, ela tem a maior chance de não se relacionar com alguém durante a vida.
Objetificação da mulher negra
Para entender a questão afetiva da mulher negra, é preciso voltar ao início do Brasil, com suas origens escravagistas que até hoje permeiam o imaginário popular da sociedade. Ao contrário das mulheres brancas da casa grande, que faziam parte da “família”, portanto, deviam ser respeitadas, a negra representava um escape para o seu senhor, um corpo escravizado que não tinha poder para dizer “não”, e estaria sempre à disposição de seus fetiches e desejos.
A escravidão acabou, mas a cultura de estupro do Brasil-colônia deu conta de alimentar estereótipos que, em geral, desumanizam a mulher negra. Na literatura, no cinema, na televisão e na imprensa, até há pouquíssimo tempo era regra ver esse grupo retratado exclusivamente como funcionárias domésticas subservientes, mulheres promíscuas que atentam a virtude do branco, ou ainda como barraqueiras violentas e invejosas que causam medo e apreensão.
A baiana Daniela Souza, 38 anos, descreve o que é a hiperssexualização da mulher negra. Além disso, fala sobre quando entendeu as intenções dos homens brancos sobre os corpos negros: “Tenho vários relatos a discorrer, mas dentre eles, evidenciei um problema no meu antigo trabalho, onde um homem branco me disse ‘minha negrinha, te dou vinte mil reais para uma noite comigo’”, relembra. “Essa frase ainda me atormenta, mas o que esperar de um homem branco, patrão, que vive em uma sociedade onde a imagem cultural da mulher negra é estruturalmente atribuída ao papel de servir?”, reflete Daniela.
Pensando na opressão histórica e nos estereótipos criados por ela, a ativista e teórica-feminista Bell hooks traz em seu livro uma reflexão: “E eu não sou uma mulher?” fala sobre as diferenças de tratamento entre mulheres brancas e negras, e como elas refletem em questões como maternidade, afetividade e na vida sexual. A objetificação sexual age para desumanizar as mulheres negras, limitando seu papel à subserviência aos brancos, e nunca como donas do seu próprio corpo e do seu coração.
A solidão da mulher negra: da infância até a fase adulta
O racismo e a misoginia se unem, e transformam a mulher negra — quanto mais retinta, pior — em uma criatura “inamorável”. Afinal, se mulheres que gostam de sexo não servem para casar, o que será da negra que está sempre à disposição de quem quiser? A carência de afeto e o racismo que afeta o amor fica à mostra quando o assunto é relacionamento sério, namoro ou casamento para as mulheres pretas.
A rejeição é presente desde cedo, nos eventos escolares, nos colegas próximos, nas primeiras paixões da adolescência e nos demais relacionamentos que formam seu convívio social e familiar. É algo que acontece, mas que não é discutido, nem ensinado – algo complexo demais que têm sérias implicações na autoestima e na formação da personalidade da criança. A jornalista Ingrid Mabelle, 25 anos, conta quando descobriu o que é ser mulher negra de pele escura nessa sociedade machista e racista:
“É muito complicado falar sobre a solidão da mulher negra porque é algo que a gente demora a entender. Normalmente na escola, quando estamos nos relacionando com amigos e colegas de classe, existe um isolamento que parece involuntário. Contudo, tem muito a ver com a cor da pele e, quando percebemos isso, depois de mais velha, é triste. Quando eu era pré-adolescente e adolescente não compreendia o fato de ter poucos amigos. Ou de ter demorado a beijar, namorar e até me relacionar sexualmente. Tudo tinha a ver com a negritude”, explica a jornalista.
Essas implicações são particularmente notórias na vida amorosa: “Minhas relações tiveram sempre uma barreira que eu, de certa forma, não enxergava. Hoje, observo que todos os meus ex-namorados ou ‘ficantes’ sempre apareceram, logo após nosso término, com outra namorada: branca e participando ativamente dos encontros em família”, relata Mabelle.
Natália Santana, de 23 anos, também descreve como foram suas experiências de vida e a sua solidão causada pelo racismo: “Eu nunca fui de ter muitos relacionamentos, nunca achei algo tão importante. Na adolescência foi algo um pouco chato, já que todos namoravam e eu nada. Porém, eu nunca relacionei esses fatores com a cor da minha pele. Sempre que me relacionava com um carinha, ele queria algo a mais, porque ‘negra é quente’, sabe como é o mito, né? Era estranho, então optava em ficar mais na minha ou me relacionava apenas com um negro.”
Pela vida das mulheres: mas quais?
Sendo a misoginia um grave problema para a sociedade brasileira, as mulheres negras se encontram muito mais suscetíveis a serem vítimas de violência de gênero: além de serem as mais rejeitadas no amor, e objetificadas até hoje, são as que mais morrem, somando 71% dos casos de homicídios conforme o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (Ipea). As pretas também são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil, atingindo 61%.
Quando se trata de mães independentes, as mulheres negras também são a maioria, naturalizando sua imagem na maternidade independente e solitária e sendo as principais vítimas do abandono paterno. As necessidades emocionais das mulheres negras são diferentes das brancas. Há o grande peso da solidão, da necessidade de ser forte o tempo inteiro e, ainda por cima, da opressão racial que mina oportunidades e destrói a autoestima.
Dados como esse evidenciam a necessidade e a urgência de uma discussão mais ampla sobre os efeitos do racismo na vida das mulheres pretas e pardas, e como estereótipos são prejudiciais para incentivar uma violência que deveria ter ficado 300 anos no passado. No nosso canal do Youtube, a embaixadora Ana Paula Xongani conversou um pouquinho sobre o assunto. Vem ver: